Parece até que a Globo mudou de lado. Será?
A estratégia é muito clara: durante a novela, imagens lindas, um galã que traz da Europa a solução para produzir sem venenos e os agricultores se organizando para lutar contra o velho coronel. No intervalo, plim plim: Agro é pop, agro é tudo. Entendeu? Ou confundiu?
Não é de hoje que a imagem do agronegócio brasileiro vai mal. Nos últimos anos, cada vez mais notícias denunciam o trabalho escravo, a intoxicação por agrotóxicos, o desmatamento, a falta de água e os transgênicos. Essas denúncias têm rompido a barreira da grande mídia e chegado à população. Pesquisas de opinião recentes comprovam que a sociedade vê os agrotóxicos de forma negativa, e acha que o Brasil usa muito veneno. Ao mesmo tempo, o IBGE mostrou em 2006 que, mesmo com menos terras e menos crédito, é a agricultura familiar quem bota mais comida na mesa da população.
Não é de hoje também que os ruralistas se esforçam para mudar sua imagem. Para isso, já se utilizaram de figuras de grande repercussão nacional como Pelé, Giovanna Antonelli e Lima Duarte para afirmar a importância do agronegócio brasileiro, tentando nos fazer perceber como ele está presente em nossa dinâmica diária, não só na alimentação. Em um de seus anúncios publicitários, chegaram até a criar a ideia de que “todo brasileiro possui uma fazenda”, que seria sua geladeira com os produtos gerados pelo agronegócio. É uma evidente piada de mau gosto: no país que possui a segunda pior distribuição de terras do mundo, são justamente as agricultoras e os agricultores familiares, que quase não têm terra, os responsáveis por 70% da alimentação que chega à nossa mesa.
Mesmo com as investidas do agronegócio buscando mostrar os benefícios de seu modo de fazer agricultura, a população tem resistido. Há quase 30 anos, vemos a força de iniciativas de produção orgânica e agroecológica da agricultura familiar no Brasil. A ação dos agricultores e agricultoras, com incentivo de diversas organizações e movimentos, junto com o crescimento do debate ambiental, levantou na população uma forte preocupação sobre o que comemos.
Umas das estratégias dos grandes produtores e da indústria alimentícia consiste justamente em se apoderar dessa preocupação e lançar produtos “verdes”, “saudáveis”, “orgânicos” e até “agroecológicos”. As investidas tem sido em todos os campos, sendo a comunicação peça estratégica para avançarem nesse sentido.
Neste contexto, surgiu entre os ruralistas uma nova ideia para promover o “agro”: produzir uma novela em rede nacional, no horário nobre da emissora de maior audiência do país. Não tem sido incomum ouvir de ambientalistas, consumidores de orgânicos e gente que defende a agricultura familiar elogios ora velados, ora rasgados, à novela Velho Chico, da Rede Globo de Televisão.
A novela é, de fato, um produto de alta qualidade técnica, com um elenco de muitos bons atores e atrizes, veteranos e da nova geração. É linda esteticamente, afinal a paisagem é banhada pelas águas do Rio São Francisco, pelas paisagens da Caatinga e pela beleza que só o Semiárido brasileiro tem. Em seu enredo, exalta as vantagens de uma “nova” agricultura, ecologicamente correta, ambientalmente sustentável, “limpa” de venenos e conduzida por uma cooperativa de pequenos agricultores.
Parece até que a Globo mudou de lado. Será? Trazer a narrativa focando nessa abordagem é uma forma de conquistar o espectador, e baixar sua guarda em relação a criticidade do que, no fundo, está por trás desse enredo.
O agronegócio é um modelo que não se sustenta. Gera pouquíssimos empregos, não produz tanto alimento quanto afirma, não é rentável sem generosos aportes públicos, provoca doenças, reduz a biodiversidade e gera inchaço nas cidades. Algo assim só pode continuar existindo com muita propaganda e disputa do imaginário popular. E quem tem se dedicado a isso é justamente a Rede Globo de Televisão. Não é à toa que, entre os membros de Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), junto a empresas de agrotóxicos e sementes, logística, bancos, consultorias agrícolas, fabricantes de máquinas, advogados e indústria veterinária, se encontra a velha TV da Família Marinho.
A estratégia é muito clara: durante a novela, imagens lindas, um galã que traz da Europa a solução para produzir sem venenos e os agricultores se organizando para lutar contra o velho coronel. No intervalo, plim plim: Agro é pop, agro é tudo. Entendeu? Ou confundiu?
Para completar, o sotaque nordestino carregado e caricato que a Globo faz questão de demarcar em suas produções, como se nessas bandas do lado de cá tivéssemos uma forma homogênea de falar. As belas e produzidas imagens se confundem em um filtro que deixa o espectador sem saber se está em 2016 ou 40 anos atrás, e nos levam em alguns momentos à imagem de um Sertão atrasado, parado no tempo. Somos então, mais uma vez tomados e tomadas por velhas histórias contadas sobre o povo da região Nordeste, agora com a salvação vinda da França na forma de uma tal “agricultura sintrópica”. Porque, se tem uma coisa que o capital faz muito bem, é dar novos nomes ou trazer nomes pouco conhecidos para o que, muitas vezes, a sociedade já fazia ou sabia. A agroecologia, a construção do conhecimento agroecológico, pautada pela sociedade civil, mudou de nome e de cara na novela.
Ainda assim, as contradições continuam, afinal o agronegócio, o agro que é pop e que é tudo, que assim a Globo propaga nos intervalos da novela, não tem relação nenhuma com o discurso do seu enredo. O agronegócio só funciona com muito veneno, e nada tem de sustentável. Mas é assim que o capital tenta se reinventar e contar suas histórias.
Nós, que construímos os movimentos de luta pela terra e pela agroecologia, não temos em nossas mãos os meios de comunicação de massa, apesar de serem concessões públicas. Gostaríamos de poder mostrar, com a mesma força, que a agroecologia de fato é um caminho, mas que precisa ser para todos e todas. Não pode mais uma vez ser um conhecimento que fica nas mãos dos que tem dinheiro. Continuamos na luta e de olho. A democratização da comunicação é necessária para o exercício da nossa verdadeira democracia. A comunicação é um direito humano, e sem ele, construir a nossa agroecologia será muito mais difícil.
Fonte: Brasil de Fato